Testemunho na primeira pessoa
(José Rui Teixeira)
Daniel Faria: um poeta intemporal
A 10 de abril, Daniel Faria
completaria 50 anos (1971-2021), mas há cerca de 20 anos partiu de uma forma
repentina.
Fomos entrevistar alguém, o
Professor Doutor José Rui Teixeira, poeta / escritor e diretor pedagógico do
Colégio Luso-Francês, no Porto, que além do amor pela escrita e pela poesia,
conheceu e privou com Daniel Faria.
José Rui Teixeira, como
conheceu Daniel Faria?
José Rui Teixeira (JRT) – Conheci
o Daniel Faria no princípio da década de 90, no contexto das dinâmicas da
pastoral vocacional da Diocese do Porto: o Daniel era seminarista e eu (mais
novo) pré-seminarista. Depois, quando entrei para o Seminário Maior diocesano e
comecei os estudos teológicos, ele foi para Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, no período que antecedeu a sua decisão por uma consagração monástica.
Como o caracteriza?
JRT – Passaram mais de vinte anos
sobre a sua morte. Por vezes temos a tentação de olhá-lo à luz de uma certa
“mitificação” da sua figura, potenciada pela morte prematura e pela passagem
dos anos. Seja como for, guardo do Daniel a memória de um “rapaz raro” (como o
definiu Alexandra Lucas Coelho): sensível e inteligente, particularmente culto
para a sua idade e com um temperamento contemplativo (creio que não é exagerado
considerar tendencialmente místico o seu temperamento).
Gostaria de partilhar connosco
alguma passagem ou episódio que tenha acontecido convosco?
JRT – Privei mais com o Daniel em
1994 e 1995. Falávamos de literatura. Creio que foi o Daniel que mais influiu
em mim o desejo de ser poeta. Recordo bem o contexto em que, em 1998, perdeu a
disquete com os poemas de Explicação das árvores e de outros animais e Homens
que são como lugares mal situados (ambos publicados em 1998, pela Fundação
Manuel Leão). Também recordo a última vez que o vi, em janeiro ou fevereiro de
1999, no Mosteiro de Singeverga.
Corrobora com a opinião de
muitos que o conheceram e privaram com ele, que ele não deixava ninguém indiferente
e era algo especial?
JRT – Sim. O Daniel era discreto
e não se impunha. No entanto, era uma pessoa profundamente intensa e
impressiva. Tive a consciência de que era especial logo quando o conheci.
Já existe uma associação que
perpetua a vida e a obra de Daniel Faria, na sua opinião como se poderia torná-lo
mais conhecido e lido?
JRT – O Daniel Faria tem a sua
poesia muito bem editada, na Assírio & Alvim. É reconhecido no meio
literário e académico. Para além da Associação Casa Daniel, a Cátedra Poesia e
Transcendência (da Universidade Católica) tem trabalhado no estudo e divulgação
da poesia de Daniel Faria. Creio que, neste momento, é um poeta reconhecido nos
mais restritos cânones da literatura portuguesa.
Daniel Faria era um poeta, um monge
ou um místico? Ou as três coisas?
JRT – O Daniel Faria era as três
coisas. No seu caso, eram indissociáveis.
De toda a sua obra, que livro
ou textos salientaria? E porquê?
JRT – Os três últimos livros (Explicação
das árvores e de outros animais, Homens que são como lugares mal
situados e Dos líquidos) constituem o “corpus” da sua poesia. Tudo o
resto, considero-o no âmbito de uma juvenília, apesar de lhe reconhecer muita
qualidade. Esse tríptico (os dois livros de 1998 e o seu último livro,
publicado postumamente em 2000) constitui – na minha opinião – um dos objetos
mais extraordinários na história da literatura portuguesa
Considera Daniel Faria um
poeta atual? Ou à frente do seu e nosso tempo?
JRT – Considero-o um poeta
intemporal.
Daniel Faria partiu muito
cedo… Que recordações tem das notícias do acidente e falecimento?
JRT – Fui uma das primeiras
pessoas a saber da sua entrada no Hospital de S. João, na medida em que a minha
irmã é aí médica e me informou imediatamente. A sua morte trouxe uma profunda
consternação. Recordo que a primeira coisa que fiz quando soube do seu óbito
foi reler a sua poesia.
Que palavras finais quer
deixar aos nossos leitores?
JRT – Resta-me desejar que
descubram a poesia de Daniel Faria ou a ela regressem como quem celebra a
memória e o dom da sua vida.
José Rui Teixeira (Porto,
1974). Estudos Teologia (licenciatura), Filosofia (mestrado) e Literatura
(doutoramento). Dirige a Cátedra Poesia e Transcendência, na Universidade
Católica Portuguesa, e o Colégio Luso-Francês. É professor convidado e
investigador de várias instituições académicas na Europa e na América Latina.
Reuniu a sua poesia em Autópsia (Porto Editora, 2019).
Daniel Faria (1971-1999)
Daniel Augusto da Cunha Faria
nasceu em Baltar-Paredes a 10 de Abril de 1971.
No Jardim-de-infância Glória
Leão iniciou a sua vida escolar. Frequentou o ensino primário na Escola de
Feira nº 2 (Calvário) (1977-1981) e o ciclo preparatório na Escola Preparatória
de Baltar (1981-1983).
Desde cedo manifestou sedução
pelo transcendente, indagou luz na leitura e augurou o desejo de ser padre.
Após os primeiros encontros
no pré-seminário (1982-1983), entrou para o Seminário do Bom Pastor, em
Ermesinde (1983-1986), onde manifestou veia poética, estimulada pelos
educadores, como P. Manuel Mendes que lhe põe nas mãos Sophia e Eugénio. Passa
para o Seminário de Vilar (1986-1989) e, como os colegas do mesmo ano do
seminário, frequenta a Escola Secundária Rodrigues de Freitas, tendo como
professora de português Rosa Maria Valente Goulão. Em 1989 começa a frequentar
a Faculdade de Teologia, como aluno do Seminário Maior da Sé (1989-1994).
Concorre a prémios e publica
os primeiros poemas. Organiza um Círculo de Leitura (s) no Seminário Maior, que
promove a escrita poética e o contacto com autores, levando mesmo Eugénio de
Andrade a falar ao Seminário. Lê Herberto Hélder, Ruy Belo, Sophia, Rilke,
Borges, Luísa Neto Jorge, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles, entre outros.
A família sempre o recorda como dedicado à leitura e à escrita, retirado no seu
“quadrado de sossego”. A fragilidade do seu físico e a timidez do carácter não
apagam a sua invulgar inteligência e fulgor de olhar sobre o que o rodeia.
Apaixonado pela claridade e operário do silêncio transportava dentro uma
inquietude sábia.
Desde um retiro com Dom Luís
Aranha, Abade de Singeverga – Santo Tirso, nos primeiros anos da teologia,
começa a interrogar-se sobre a possibilidade de ser monge beneditino. Ao finalizar
os estudos de teologia decide não se ordenar padre e frequentar a licenciatura
em Estudos Portugueses, na Faculdade de Letras do Porto (1994-1998), onde entre
outros professores, conhece Vera Vouga. Reside entre 1994 e 1997 na paróquia
Senhora da Conceição, onde Carlos Azevedo seu diretor espiritual e professor
era pároco, e no fim-de-semana continuou a colaborar na paróquia de Marco de
Canaveses, orientada por Nuno Higino Cunha. Ai encenou Molière, como no
Seminário tinha encenado Eliot (Assassínio na catedral). A variedade da sua criativa
sensibilidade estética expressou-se também em colagens e desenhos.
No último ano dos estudos
reside no mosteiro de S. Bento da Vitória como postulante e, terminada a
Faculdade de Letras, inicia a vida monástica como noviço, no mosteiro de
Singeverga. Aí vem a ocorrer uma queda doméstica, na noite de 3-4 de Junho, que
o leva ao Hospital de São João, onde depois do acolhimento entraria em coma,
seria operado, sem resultado positivo, e viria a falecer a 9 de junho de 1999.
A sua tese de licenciatura na
Faculdade de Teologia, defendida em 1996, sob orientação de Carlos Moreira
Azevedo, foi publicada postumamente: A vida e conversão de Frei Agostinho: entre a aprendizagem e o
ensino da cruz. Lisboa: Faculdade de Teologia da U. C. Portuguesa,
1999.
Dedicou à amizade a sua mais
profunda atenção, investiu o ardor do seu coração e viveu com os amigos um
acolhimento e uma invenção de gestos e de palavras sem limites. Espantosa é a
unanimidade das pessoas com quem contactou testemunharem a inspiração serena da
sua poderosa lucidez. Da sua poesia disse Sophia de Melo Breyner: “Versos que
põem o mistério a ressoar em redor de nós.”
«Daniel Faria traz uma poesia
ainda com o sopro divino e, ao mesmo tempo, extraordinariamente humana, próxima
do corpo, do desejo, da descoberta do mundo, mas também do grande combate da fé
e do conhecimento de si»; «é uma das aventuras poéticas mais radicais e
luminosas que o século XX inscreveu na literatura portuguesa», observou o padre
José Tolentino Mendonça (2012, Câmara Clara, RTP 2).
E quando E quando chegou a
vez de Sophia o ler, disse: “Versos que põem o mistério Recebeu vários prémios:
Prémio Engº Nuno Meireles, da
Câmara Municipal do Porto, ex-aequo em 1990, com o conjunto de poemas: Uma
cidade com muralha.
Postumamente, foi galardoado
com o Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes 2004, atribuído pela Câmara
Municipal de Amarante.
Em 2005, deu nome a Escola
Secundária Daniel Faria de Baltar – Paredes.
A Câmara Municipal de
Penafiel criou em 2005 um Prémio de Poesia Daniel Faria. José Luís Peixoto foi
um dos vencedores (2008, Gaveta de papéis). Teve cinco edições. Visava
trabalhos inéditos em língua portuguesa de autores com menos de 35 anos.
Carlos Azevedo criou em 2006
a Associação Casa Daniel, que construiu um espaço de eremitério na Quinta da
Cruz, Granjinha – Tabuaço, perto do mosteiro cisterciense de São Pedro das
Águias. Este projeto, inaugurado a 12 de julho de 2014, foi sonhado com Daniel
Faria nas visitas anuais ao local e levado por diante, após a sua morte,
assumindo então o seu nome de batismo.
Pablo Fidalgo Lareo, escritor
e criador teatral, apresentou com Tiago Gandra uma peça sobre a vida de Daniel
Faria, no Teatro Rivoli no Porto a 9 e 10 de Junho 2016 e no Teatro D. Maria
II, em Lisboa, dias 19 a 22 de janeiro de 2017.
Daniel Faria foi traduzido
para espanhol, pela Editora Sígueme, e teve surpreendente sucesso, estando nos
livros mais vendidos nos primeiros dias, apesar de ser texto de poesia. Na
Argentina mereceu um acolhimento enorme.
Está a receber no Brasil uma
notável adesão. Tem sido objeto de teses de doutoramento.
(Carlos A. Moreira Azevedo, https://danielfaria.pt/)
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